Quem dita as regras?
(o choque cultural e o comportamento da cena independente do rap no
Brasil)
Por vivenciarmos um complexo de transformações no campo cultural, mais especificamente na arte (e é bom lembrarmos que cultura é todo um conjunto onde a sociedade, ou algum grupo, exterioriza suas concepções, idéias, costumes, formas de relacionamento), vejo a possibilidade de uma discussão que tem como objetivo principal a observação das especificidades da cena independente do rap no Brasil.
Lembrando que às transformações e o processo cultural é dado uma maior relevância nesse texto, quero excluir o confrontamento pessoal para com alguns protagonistas e sim situá-los num contexto político, ideológico e que muitas vezes seguindo uma demanda ou uma lógica mundial, empurram todo um comportamento a determinadas tendências, muitas das quais mercadológicas.
A relação dos costumes e tradições do Brasil com o que vem de fora é dada, na maioria das vezes, uma maior importância. Essa relação reflete um comportamento globaritário, e nisso o pensamento de Milton Santos se faz valer, que é impulsionado por diversos tipos de violência, a começar pelo ferimento de costumes locais. O contato e relações culturais são passíveis sim de transformações quando aproximadas de forma mais íntima, mas com isso não queremos dizer que desse contato venha a nascer a intransigência e idéias de valores implicando a superioridade de uma cultura sobre a outra. Quando se chega nesse estágio trocas não são possíveis e sim a imposição do mais forte (seja lá o que isso queira dizer) sobre o mais fraco, do melhor sobre o pior, do mais aceito pelo que tem menos importância. Quando caímos nesse estágio a idéia de cultura vai-se pelo ralo. Historicamente falando é delicado falar de contatos culturais, já que sempre houve esse tipo de troca entre diversas civilizações. Não existe uma cultura melhor do que outra, costumes ou tradições que possam ser postas num ringue a fim de se extrair dali o mais forte. Costume é costume, cada qual som suas características e sem julgamento de valor. É sobre isso que a singularidade de cada povo se forma.
Porém todo um contexto histórico impõe outro tipo de relação entre pessoas e isso se faz valer desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, período Moderno até chegar ao Contemporâneo.
Hoje o que observamos é uma forma violenta de globalização que empresas, multinacionais, órgãos internacionais exercem de forma espantosa nossas vidas. Com isso não devemos de forma alguma excluir a participação dos protagonistas corroboradores dessa barbárie, pois há conceitos éticos que entram forte nessa discussão. Por mais que o homem seja mercadoria (na/ concepção de Marx) e seja uma corrente mecanicista, não devemos fazer vista grossa com a ética, pois dessa forma estaríamos livrando o homem de ser homem.
O rap no Brasil é recente e tenta agora caminhar de forma independente. Porém o que não se percebeu ainda é que relações humanas não podem ser postas dentro de um recipiente e se reproduzir a mesma experiência em locais diferentes. Com isso estamos caindo num grotesco erro que nos é imposto como verdade. Em outras palavras, não cabe reproduzir a mesma corrente cultural, ideológica, ou o que quer que seja de forma idêntica em diferentes localidades onde diferentes seres humanos se manifestam. Ao se chocar, culturas diferentes passam a sofrer reações específicas e de forma “natural”. Ou seja, a idéia é que ao se chocar as trocas culturais possam realizar-se com a não sobreposição que vá acarretar o fim de alguma sobre a outra. Em paralelo a isso há uma reação contrária, e aí incluo alguns colegas como reprodutores desse tipo de comportamento, mundializada que tende a padronizar a cultura de um determinado local. Ou seja, esses protagonistas a que me refiro acatam um rap americanizado com todos os seus vieses para o território brasileiro onde esse tipo de comportamento não se torna algo representativo para a nossa realidade.
A partir dessas observações podemos nos situar na cena nacional, onde os
protagonistas a que me refiro são os MC´s, DJ´s, produtores e todos que formam a cultura hip hop. É claro que quando falo do choque de culturas (arriscaria a dizer que essa cultura que falamos nada mais é do que uma cultura-econômica), não generalizo todas as manifestações existentes, pois existe sim dentro de cada localidade grupos que ainda preferem beber da fonte local para formular melhor os costumes. A minha pouca experiência na cena me habilita a afirmar isso. Não chamaria esse movimento que tende a permanecer mais fiel às suas raízes de “resistência”, mas sim uma forma mais inteligente da não padronização do rap no Brasil. É claro que com uma cultura vinda de fora vem também valores introgetados, e essa cultura ao chocar-se com a outra não se mantém estática, aliás inalterações aí tornam-se impossíveis.
Com isso quero dizer que, ao chegar ao Brasil, o rap trouxe consigo toda uma estrutura já iniciada em solo estrangeiro. Não vamos cair aqui na questão se o rap surgiu na Jamaica, nos Estados Unidos, no Nordeste brasileiro ou com Homero. Então ao chegar ao Brasil, o rap já trouxe consigo toda uma conduta que vai desde a rebeldia do negro e todos aqueles que de alguma forma são desprivilegiados socialmente, trouxe costumes, um linguajar característico, formas de se vestir e de se comportar, ou seja, toda uma vestimenta cultural já própria. Observamos também nascer com eles todo um esquema de marketing (e tudo que envolve marketing e propaganda temos que ter todo um cuidado com que tipo de idéia, imagem e visão quer ser passada) que fez com que o rap se tornasse hoje fenômeno mundial. Não podemos omitir o notável processo que o rap enfrentou para popularizar-se mundialmente (mas devemos sempre nos lembrar: à custa de que?). Porém, uma imagem massificada de um rap envolto de conceitos que não representam uma fiel ascensão de valores ligados aos seus protagonistas iniciais são os mais presentes no Brasil. Em outras palavras, o verdadeiro nascedouro do rap com todo o seu engajamento político é dificilmente posto em prática pelos que formam hoje a cultura hip hop.
A profissionalização do rap hoje é tida com grande importância. Nada mais justo que viver do que se ama. Mas aí caímos em mais uma questão. O que é ser profissional no Brasil? Essa profissionalização hoje vem acarretar a perfeita inclusão de uns e o escanteio de outros. Quando não se dá mais espaço àqueles que estão começando, ou seja, aqueles que ainda produzem de forma mais “barata” um determinado tipo de arte, exclui-se de forma violenta e mesquinha todo um processo natural do espírito artístico.
O que quero dizer é que não é levado a sério aquele cuja produção envolve recursos modestos. Quando leio a entrevista de um determinado artista vinculado a Nike dizendo que só há espaço para os “profissionais”, tenho a idéia de que só poderão participar do processo criativo artístico os que jogarem de acordo com as regras do mercado. Ora, nada menos democrático do que a formulação de um discurso puramente ideológico, violento e desrespeitoso com àqueles que também bebem da mesma conjuntura artística e estão presentes no mesmo bojo cultural. Isso gera um problema ainda maior que é o monopólio da cena por esses poucos que com seus valores se acham mais aptos que outros e, tendo uma maior repercussão, indicam outros que consideram tão aptos quanto eles. Em outras palavras, os que agora se acham profissionais apadrinham outros com esse mesmo tipo de mentalidade.
Mais uma vez volto à pergunta. O que de fato é ser profissional? É um maior
espírito inventivo, investigativo e proeminente ou aquele que preza por um maior aparato tecnológico e mercadológico para fazer valer suas idéias? Vocês poderão pensar na possibilidade de uma combinação harmoniosa entre os dois. Sim é possível. Mas, será que todos os artistas necessitam e querem ter suas idéias vinculadas a um tipo de profissionalização que nos fazem acreditar ser o único caminho possível? Conforme já disse, não se exclui a possibilidade de mesmo atrelado a recursos mais faustosos termos bons resultados artísticos. É claro que a partir do momento que o resultado artístico passa a sofrer qualquer tipo de alteração que seja estranha ao criador, isso passa a se tornar discutível. Olhando mais de perto é errado afirmamos que só o mercado dita as regras. A questão vai muito além disso.
O mercado, ciente de sua força e influência, dita as regras. Há aqueles que em detrimento dos seus valores, conceitos éticos e bom senso seguem essa força e com isso violentam sua cultura local. E há os que mesmo sendo subordinados pela força do dinheiro vêem nesse processo de globalização ferramentas mais amenas e não destrutiva dos valores de cada um respeitando e sendo íntegro com o próximo. Então volto a perguntar, ligar-se a grandes indústrias implica necessariamente na troca de valores?
Diria que não necessariamente, mesmo que muitos exemplos possam me desmentir com facilidade. Hoje um artista dispõe de outros meios para propagar suas idéias, o que não implica na sua completa dependência de grandes esquemas fonográficos. As vezes penso na grande quantidade de talentos perdidos principalmente na primeira metade do século XX por não estarem ligados a um grande aparato mercadológico pois é confortável afirmar que não havia público para determinado estilo ou um espaço para vincular determinadas idéias. Coisa que nunca faltou nesse mundo é gente querendo conhecer coisas novas. Aí entra a pergunta. A quem se quer agradar? Ou melhor, a quem se quer vender? Mesmo sendo coagido por uma força não há uma obrigatoriedade em se submeter a essa força ao ponto de desestruturar todo um processo artístico.
Nessa idéia de força também podemos citar um conceito pueril tribalizado que os protagonistas dessa cena têm em relação uns com os outros. É mais forte quem tem uma galera maior, quem idealiza discursos que tendem a ser encarados como um único caminho a se seguir, e muitas vezes nisso deixa-se de fazer música para fazer política ideológica a favor de suas ações.
Faz-se valer então a idéia de superioridade onde os mais aptos são os que dispõe de todo um aparato que vai desde o dinheiro oferecido por uma tendência globaritária e usufruído por estes que dispõem um mercado frágil e que conseqüentemente ditam as regras sobre àqueles que, a seu ver, não são profissionais e não fazem o rap de verdade. Existe hoje no Brasil outra camada artística em paralelo a esses conflitos que emanam em proeminência artística que por não serem vinculados em grandes escalas passam despercebidos e omitidos por rappers que habitam uma cena mais explícita num âmbito mercadológico.
Pretendo com essas poucas observações não fomentar mais uma disputa de força e sim uma reflexão sobre o que hoje entendemos por mercado, cultura, formas de se fazer arte e o espaço que a cada manifestação tem direito. Ganhar a vida com a arte é perfeitamente possível, mas ainda não é uma realidade por egoísmo de alguns. O grande problema da construção do conhecimento não chegar até todas as pessoas ou a um maior número possível é a conformidade de alguns em não achar necessário que esse conhecimento chegue até todos. Por isso dizem ser o conhecimento um poder, pois ao não achar necessário essa maior expansão e se concentrando nas mãos de poucos, o conhecimento torna-se de fato poder transformando-se numa ferramenta de dominação de uma maioria ignorante. Já no meio cultural onde o espírito inventivo não é diminuído por uma simples força do mercado, vemos um perigoso processo de ocultação dessas forças criativas por toda uma tendência globaritária, mercadológica e mesquinha que alguns insistem em seguir para justificar um status pouco representativo para o crescimento da cultura como um todo. A partir do momento que, em detrimento de benefícios próprios, alguns artistas propõem-se a caminhar junto de um esquema que exclui o outro, compartilho a idéia de que “pode ser um profundo equívoco visualizar a arte como uma simples expressão do espírito”, onde Peter Buker expõe o cuidado ao analisar as diversas manifestações artísticas.
Arthur Moura
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